quinta-feira, abril 23, 2009

Meu gato Coco

Daqui pra frente, todas as quintas, o colega Ciro Hamen, do Acento Negativo, escreverá crônicas sobre a cidade pra Action. Hoje, sua quarta crônica.

Theresa e Marcos.

Marcos está sentado no café, esperando por Theresa. Olha para os lados, tira um celular do bolso e liga para ela. Não tem resposta. Marcos é um homem com pose de canalha: óculos escuros, bigodinho e cabelo preso em um rabo de cavalo. Se veste como se fosse um integrante da máfia, com camisa social e cigarros sempre a mostra.

- Cacete, Theresa! – diz, irritado.

Do outro lado da rua, Theresa está correndo. Toda arrumada, com batom e maquiagem, está claramente preocupada com a aparência. Tem mais ou menos uns 20 e poucos anos e é bonita e elegante. Chega no café ofegante.

- Oi Marcos, desculpa a demora.

Ao vê-la chegar, Marcos se levanta e dá um beijo em seu rosto.

- Oi Theresa. Ah, tudo bem. Eu acabei de te ligar, mas ninguém atendeu.

- Ah, sim. Eu estava com o telefone desligado. Desculpa a demora, fiquei um tempão na rua com duas menininhas que me chamaram de dentro de uma casa, ali na Luís de Faria, dizendo que perderam o cachorrinho. Elas me chamaram e perguntaram se eu não tinha visto, aí resolvi ajudar elas a procurar, mas não adiantou nada.

- Puta... Mas e aí?

- Ah, a gente ficou procurando. Meu deus, eu fiquei com tanta pena delas.

- Senta aí. Toma um café.

- Bom, acabei dando meu telefone pras menininhas... O quê? Elas deviam ter uns 10 anos. Peguei o telefone delas também e disse que se encontrasse o cachorrinho ligava. Por que fiz isso?

- Fica calma. Elas acabam encontrando – Marcos diz, enquanto acende um cigarro.

- Não sei! Aquilo me doeu o coração! Eu adoro animais, você sabe, né? Você já viu o meu gato? Eu devo ter uma foto dele aqui em algum lugar – Theresa mexe na bolsa, olhando para Marcos ao mesmo tempo - Não sabia que você fumava.

- Você não?

- Não. Nunca coloquei um cigarro na boca em toda a minha vida.

- Pois devia – e solta uma baforada na direção dela.

- Nossa. Você fuma igual àquele ator.

- Marlon Brando?

- Não, não... Um outro. Ah, esqueci o nome agora.

- Ah, já me disseram que eu sou o Marlon Brando do cigarro.

Theresa puxa o celular para fora da bolsa.

- Tá aqui. Uma chamada perdida de Marcos... Tomicka? É assim que fala? O que é? Judeu?

- Não, não. É polonês. Dá pra perceber?

- Bom, talvez. É que eu nunca tinha visto antes e tudo que soa estranho, já vou achando que é judeu. Mas nunca imaginaria que sua família é polonesa. Não tem muitos imigrantes aqui, né? Eu sou judia, sabia? Quer dizer, não pratico, mas nasci assim.

- Sério? Não tem cara.

- Ah, e como é a cara de um judeu?

- Ah, não sei. Como é a cara de um polonês?

Theresa olha para a cara de Marcos e diz:

- São bem branquelos, meio calvos, magrelos. E com uma cara de bobo assim...

- Pelo menos não são circuncisados – ele responde, irritado.

- Bom, esse não é o meu caso.

- Como não? Pode ser. Existe a circuncisão feminina.

- Sim, mas não no judaísmo, né...

- Bom, existem todos os tipos de barbaridade onde você menos imagina. Seu pai é circuncisado?

- Não sei!! Que pergunta!! O quê? Você tem problemas...

- Calma... Só queria saber...

- Acho que não. Ele é italiano. Minha mãe que é judia. Tradicionalmente, o filho só se torna judeu se a mãe também...

- Sim, eu sei. Mas não só judeus que circuncisam... Muçulmanos, algumas tribos africanas, e nos Estados Unidos também fazem isso por "razões médicas", porque é mais limpo e toda essa bobagem.

- Mas não é?

- Bom, talvez... Mas até aí... Será que ninguém sabe usar um chuveiro ou algo do tipo?

- Mas qual é a diferença, afinal?

- Entre um circuncisado e um não?

- É!

- Toda! Você, como mulher, devia prestar mais atenção nisso. Todo o prazer está ali no prepúcio. Sem a pele, você perde tudo aquilo. Fora a crueldade que é fazer isso com uma criança. Imagina o trauma que ela leva pro resto da vida... Sem contar o fato de que ela nem escolheu por isso.

- Você estuda essas coisas?

- E o Thomas, é?

- Não, né! Olha, eu vou falar, já experimentei circuncisado antes e posso dizer que não é nada bom...

- Hahaha. Não disse? Quem é? Eu conheço?

- Acho que sim! Mas não vou falar. Bom, de qualquer jeito, ele era um idiota também. Será que tem alguma ligação?

- Bom, isso eu não posso dizer.

- Mas por que você achou que ele era?

- Ah, não sei, nunca se sabe. O pai dele não é médico?

- Não! De onde você tirou isso?

- Ah, não sei. Achei que fosse. Falando nisso, como ele está?

- Bem... Eu acho.

- Como? Acha?

- Ah, a gente não tem conversado muito. Estamos dando um tempo...

Theresa fica meio tímida e começa a mexer dentro da bolsa novamente.

- Um tempo? Mas por quê?

- Ah, não sei. Foi tudo muito rápido, sabe? Começamos a sair todo dia logo no começo. Acho que não levamos as coisas devagar e isso desgastou um pouco.

- É. Acontece... E vocês...

- Olha! Achei! – Theresa grita, puxando um papel de dentro da bolsa.

- O que é isso?

- É meu gato, que eu tinha te falado. Uma foto dele.

- Bonitinho.

- É. O nome dele é Coco!

- Coco? Por quê?

- Ah, eu tirei de uma música do Tom Waits. A música se chama “My Coco Cat”. Sabe?

- Não conheço. É do CD novo?

- Não! É antiiiga... Mas não é muito conhecida.

- Entendi. E você deu esse nome porque é fã dele.

- É. O gato dele deve ser tipo o meu... Não arranha. Só faz carinho. Sabe. O amor dos animais é incondicional, né? Eu descobri minha ligação com esse gato faz pouco tempo. Ele me olha de um jeito que nenhuma pessoa - NENHUMA - jamais vai olhar.

- Você diz isso por causa do Thomas?

- Não! Eu digo isso porque cansei de acreditar no amor. É isso. Não somos felizes e a liberdade não existe.

- Como assim, a liberdade não existe?

- O que é ser livre pra você?

Marcos fica um tempo pensando.

- Ah, não sei. Poder fazer o que quiser. Ficar ouvindo a música que eu quero, a hora que eu quero. Ter dinheiro pra ir pra qualquer lugar a qualquer hora. Sair chapando, ficar loução. Sei lá...

- Viu? Ninguém é livre. Estamos todos presos.

- E por isso você não pode ficar com o Thomas?

- É! Por isso eu não posso ficar com o Thomas!

- Isso é ridículo.

- O Thomas tem as preocupações dele. Eu tenho as minhas. Ele é mais novo. Olha, não sei. Não quero falar sobre isso. Eu vou no banheiro, tá? Já volto.

Theresa se levanta e vai ao banheiro. Marcos permanece sentado sem dizer nada.

***

Taís e Thomas

Thomas, um rapaz de mais ou menos 20 anos, está sentado em um café ao lado de Taís. Enquanto ela se mostra animada, mastigando uma barra de chocolate, ele parece entediado com a conversa.

- Quer chocolate? – ela pergunta.

- Não, obrigado.

- Está de regime?

- Não, não quero mesmo.

Taís continua mastigando, até acabar o chocolate.

- Eu te liguei há alguns dias, mas você nunca me ligou de volta.

- Desculpa. Eu deixei o telefone cair na privada.

- Meu Deus. Por que as pessoas sempre deixam

o celular cair na privada?

- É... Não sei. Eu estou sempre deixando os meus caírem na privada.

- E como está você e a Tereza?

Nesse momento, a garçonete se aproxima da mesa. É uma garota jovem, meio descolada, usando uma camiseta do Sleater-Kinney e um avental por cima da roupa. Interrompendo a conversa, ela pergunta:

- Mais café?

- Não. Obrigado – diz Tomas.

Taís pega o cardápio.

- É... Deixa eu te perguntar uma coisa. De onde vocês tiram esses nomes?

- Como assim?

- Mocca Old Fashioned... Choco Shake... Café Volkonsy…

- Esse é especialidade russa. A gente faz aqui.

- Haja criatividade para tanto nome idiota. Alguém é pago para inventar essas coisas?

- Eu mesma dou os nomes às nossas especiarias.

- Ah. Eu quis dizer... São criativos... Digo, engraçados. É... é isso. Parabéns.

A garçonete vai embora, sem dizer mais uma palavra. Thomas dá risada.

- Poxa, os nomes são ridículos, não são? Não tenho culpa...

- Olha, falando em especialidades russas, eu trouxe aqueles livros que você me emprestou – diz Thomas, tirando alguns livros de sua sacola.

- Ah, e aí? Você gostou?

- É. Gostei mais do Anna Karenina.

- Um clássico, né? Se identificou com a história do garotão que se apaixona pela mulher mais velha e casada?

- Na verdade é ela que se apaixona por ele, não é?

- Nossa, não acredito que você leu todo. São poucos que conseguem terminar.

- Eu gosto de ler.

- É uma daquelas metas que muita gente tem, de coisas pra fazer antes de morrer.

Thomas sorri e Taís continua:

- “Todas as famílias felizes se parecem entre si; as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira”.

- Você acha isso?

- Não sei nem se existem famílias felizes.

- É verdade...

Os dois ficam em silêncio. Taís coloca os livros na mesa.

- Você não me respondeu – ela diz – e a Tereza, como está?

- Ah, normal. Estamos dando um tempo.

- Um tempo? Como assim?

- Um tempo, oras. Não estamos nos vendo.

- Mas por quê?

- Não sei. Relacionamentos desgastam, né? E o nosso foi estranho. A gente se conheceu e de repente nos víamos todo dia. Quer dizer, eu gostava dela. Por mim via ela todo dia. Mas agora eu vejo que foi uma decisão inteligente parar. E vejo que idiota que eu fui. Era apenas um garoto babaca deslumbrado por aquela mulher sedutora...

- Thomas! Não é assim. Você não é um garoto babaca. O que ela colocou na sua cabeça?

- Nada! Só enxergo tudo melhor agora.

- Thomas...

- Às vezes tenho minhas dúvidas se ela realmente gosta de mim.

- Por quê?

- Não sei. Ela nunca demonstrou. Bom, mas isso não importa agora, né?

- Você gosta dela!

- É, gosto. Mas acho que gosto mais dela do que ela de mim.

- Acho que vocês têm tudo pra dar certo.

- Por que você diz isso?

- Ela gosta de você. Eu sei.

Os dois ficam em silêncio.

- Ela tem um gato. Se chama Coco – diz Thomas.

- Coco?

- É. Coco. Como um nome japonês.

- Por que Coco?

- É de uma música do Tom Waits. “My Coco Cat”.

- Ah.

- Então. Eu acho que ela coloca toda a culpa da infelicidade dela no gato.

- Como assim?

- Não sei. Ela está o tempo todo falando nele e como só ele entende ela. É quase como se fosse a irmã dela. Ela age como se fosse sozinha e só tivesse ele.

- Eu só acho que ela não quer se abrir completamente para você. Tem medo de se machucar. Afinal, ela estava com alguém bastante tempo antes de você.

- Sabe aquela pessoa que você sonhou que você ia casar, desde pequeno? Que você cresceu sonhando. Que você imaginou que era a certa para você... Então, ela é essa pessoa.

- Dá um tempo, Thomas. Acho que vocês precisam de um tempo mesmo. Depois vocês correm atrás de todo esse tempo perdido.

- É...

Tomas suspira e depois diz:

- Bom, acho que está na minha hora de ir.

- Já vai?

- É. Tenho algumas coisas pra fazer. Pega aqui a minha parte pelo café.

- Tá legal. Foi bom conversar.

- É. Foi bom. Deveríamos combinar de sair mais vezes.

- É. Pode deixar. Eu te ligo.

- Tá bom.

Thomas se levanta, dá um beijo no rosto de Taís e vai embora. Taís permanece sentada na mesa, tomando seu café e pensando nas coisas. Abre um dos livros que Thomas devolveu e fica lendo.

***

Theresa e Taís.

Theresa está sentada no mesmo café onde Taís e Tomas estavam no dia anterior. Taís aparece e abre um sorriso ao ver Tereza.

- Oi Theresa. Tudo bom?

- Tudo bem. Estava trabalhando até agora. Estou exausta.

- Ah é? Você ainda está trabalhando na locadora?

- Sim. Meu deus, é cada tapado que tenho que atender. Você nem imagina...

- É?

- Olha só. Hoje apareceu um cara lá, dizendo que era estudante de cinema e que precisava ver um filme. Veio com um papelzinho com o nome anotado e tal. Até aí, tudo bem. Bom, aí vou ver o que está escrito: “O encouraçado Polenguin”.

Taís começa a dar risada.

- E ainda tenho que aturar um cara que vai sempre lá e fica me oferecendo carona pra ir pra casa. Hoje ele queria me trazer aqui. Estou começando a ficar com medo dele – diz Theresa.

- Nossa. Sério? Mas é um cara velho? Bonito?

Taís tira um cigarro de seu maço.

- Quer um? – ela pergunta.

- Não, obrigada, eu não fumo. Ah... é um cara velho. Cinqüentão, assim. Mas não, não é nada bonito. E mesmo se fosse, ele é louco, maníaco. Chega bem no fim do expediente e fica lá um tempão, só esperando a minha hora de ir embora.

- Eu hein!

- É. Sorte sua não trabalhar lá!

A garçonete sai de trás da porta e ao ver que Taís está na mesa, fica parada por alguns instantes. Hoje, a garçonete está com uma camiseta do Yeah Yeah Yeahs. Ela faz uma cara feia, vira as costas e volta para o lugar de onde saiu.

- Olha... Você já veio aqui antes? – Taís pergunta em voz baixa.

- Não. Essa é a primeira vez.

Taís se aproxima de Theresa e segura na mão dela:

- Os nomes dos drinks são bizarros. Dá uma olhada no menu. Eu falei isso pra garçonete ontem e ela não gostou. Me olhou com uma cara feia.

- Hum... Depois eu vejo.

Theresa continua olhando para Taís. Olha para a mão dela, que ainda está sobre a sua. Levanta a sobrancelha e olha para o seu rosto.

- Não! – Taís tira rapidamente a mão de cima da de Tereza - Não é o que você está pensando. Desculpa.

- Então... Para que você me chamou aqui?

- Errr... Eu precisava falar algumas coisas pra você. É sobre o Thomas. Eu falei com ele ontem.

- E?

- Acho que ele gosta muito de você.

- E daí?

- Nada. Sei que não é da minha conta, mas fiquei comovida depois de falar com ele ontem. O Thomas está muito triste. Acho que você devia dar outra chance a ele...

- Ele que devia me dar outra chance. Escuta, sinceramente, não entendi porque você me chamou aqui. Realmente não é da sua conta...

- Sim, eu sei. Só quero que você me escute. Sei que não somos amigas muito próximas nem nada, mas escuta. Eu conheço o Thomas e nunca vi ele assim antes. Por que você duvida que ele gosta de ti? Ele me contou a história de um gato, um tal de Coco, por causa de uma música do Cat Stevens...

- Do Tom Waits.

- Sim. Isso. São iguais. Mas ele falou sobre o amor incondicional e tal. Aquilo me tocou...

- Taís, por que você está dizendo essas coisas?

- Me escuta. Por favor.

- Eu estou escutando. Já entendi o que você quer dizer. Escuta... Podemos falar sobre outra coisa? Depois converso com ele.

- Tá bom.

- Eu tenho tido uns sonhos estranhos ultimamente – diz Theresa.

- Tipo o quê?

- Elevadores. Sonho que estou dentro de elevadores e eles sobem sem parar e quando chegam lá em cima viram de cabeça para baixo...

- Nossa.

- É como se eles virassem ao contrário e eu continuasse lá dentro. É horrível.

- Tem algum significado?

- Não sei. Isso geralmente acontece quando eu vou no prédio de uma amiga, onde mora uma ex-namorada dele. O elevador lá é estranho, pára no andar errado, mas nunca fiquei presa.

- Qual é o seu signo?

- Escorpião. Por quê?

- O veneno.

As duas ficam em silêncio por alguns instantes.

Se alguém me dissesse que eu sou a mulher com quem ele cresceu sonhando, desde pequeno, não sei o que eu faria... – diz Taís.

- Ele disse isso?

Taís balança a cabeça, dizendo “sim”, e pergunta:

- Por que você duvida disso?

- Eu não estou duvidando.

Ciro Hamen é jornalista, escreve diariamente sobre cinema no blog www.acentonegativo.blogspot.com e todas as quintas-feiras no Coletivo Action.

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