Daqui pra frente, todas as quintas, o colega Ciro Hamen, do Acento Negativo, escreverá crônicas sobre a cidade pra Action. Hoje ele estréia.
Lídia era uma garota “diferente”, segundo o padrão de garotas de Santos, um lugar estranhamente conservador. Gostava de passear por aí de jeans rasgados, botas sujas e uma camiseta do Christian Death. Ela era provavelmente a única pessoa da cidade que tinha uma camiseta dessa banda californiana de death rock - gênero de música quase sempre associado ao gótico. Apesar de não se considerar gótica, Lídia andava por aí com pessoas que sempre eram chamadas de góticas e isso a deixava puta da vida.
Freqüentava os barzinhos em frente à praia e dizia que não estava nem aí para os que confundiam o seu visual com “gótico”. Virava uma garrafa de cerveja atrás da outra e mandava quem não gostava ir se foder. Às vezes ia para lá com um skate embaixo do braço. Adorava andar de skate, mas odiava o Charlie Brown. Era amiga de vários garotos, mas não dava pra quase nenhum. Apenas para alguns. Era bastante seletiva. Só aqueles que eram razoavelmente bonitos e que não fossem cabeludos – algo que ela achava repugnante - tinham chances de algum dia entrar em seu quarto.
- Eu não sou gótica – gritava para os que a chamavam assim. – Não pode nem usar preto, maquiagem e bota que a pessoa já é considerada gótica.
- Às vezes eu não entendo umas coisas que você usa – falava Jéssica, sua melhor amiga.
- Como o quê, por exemplo?
- Essa coleira aí, cheia de espetos... O que é isso?
- Isso é um visual punk de verdade. O Danzig, do Misfits, usava uma dessas.
- Usava? Não sei não...
- Que droga. Você também não entende nada.
Certo dia, Lídia resolveu dar uma volta pela praia. Não tinha nada pra fazer, então comprou uns cigarros, uma cerveja e foi admirar a bela paisagem da orla. Sentou em um banquinho e ficou olhando para o horizonte. Não havia nada de diferente sobre a vista. A areia, o mar, os navios e os bandos de pássaros eram os mesmos de sempre. Mas naquele dia, ela estava realmente apreciando o clima do litoral.
Depois de quase meia hora sentada ali, um sujeito se aproximou. Usava longos dreads e tinha uma barba meio loira. Era um tipo meio surfista.
- Oi.
Em uma dia qualquer, Lídia provavelmente diria “Eu tenho conheço?”, mas nesta tarde ela precisava de companhia e queria saber o que um cara daquele achava do visual dela. Estava com a auto-estima baixa e queria ouvir uns elogios.
- Oi. Tudo bem? – falou.
- Eu te conheço de algum lugar.
- Conhece?
- Não é você que escreve aquelas histórias que são demais?
Logo, ela percebeu que o cara realmente conhecia ela e se arrependeu de ter dado corda para a conversa.
- Acho que sim.
- Uma vez eu estava no bar e falei pra você sobre o cara com quem eu moro e como ele é um idiota, que não ajuda a arrumar nada, não lava a louça e deixa tudo espalhado. Aí, na hora, você escreveu um conto sobre eu matando ele com garrafas, que ele tinha deixado pelo chão do nosso apartamento.
- É. Eu lembro disso.
- Nossa, eu achei aquilo o máximo. Será que você poderia escrever uma nova versão?
- Nova versão?
- É. Na verdade, eu estou aqui na praia porque precisava estudar, mas não consigo com todo o barulho que está em casa. Aquele filho da puta chamou mil pessoas para uma festa lá. Essa nova versão seria mais legal, com mais pessoas e MAIS mortes.
- É... Fica pra outra hora. Agora eu vou dar um mergulho.
- Ah... Tudo bem.
E ela andou em direção ao mar. Entrou na água de bota, camiseta do Christian Death e tudo.
Logo ficaria escuro e ela precisaria voltar pra casa.
Ciro Hamen é jornalista, escreve diariamente sobre cinema no blog www.acentonegativo.blogspot.com e todas as quintas-feiras no Coletivo Action.
Ciro, parabéns por essa estréia. Sempre leio crônicas quando me resta algum tempo e gostei do seu trabalho. Até a próxima quinta-feira.
ResponderExcluirValeu Alex.
ResponderExcluirQuinta-feira que vem tem mais!
Abraçooo!