quinta-feira, junho 11, 2009

Luciana passou dos limites

Daqui pra frente, todas as quintas, o colega Ciro Hamen, do Acento Negativo, escreverá crônicas sobre a cidade pra Action. Hoje, sua décima crônica.

Luciana passou dos limites. Tentei dar várias chances para ela, mas não adiantou. No começo estava tudo bem. Parecia uma pessoa legal e bem tranqüila. Mas com o tempo o “bem tranqüila” se tornou irresponsável e negligente.

Vou explicar: Moramos juntas no mesmo apartamento em Curitiba, cidade que escolhemos para fazer faculdade. Para uma carioca, como ela, talvez o frio curitibano não tenha feito muito bem. Não sei. Mas o fato é que as coisas não andavam muito bem na nossa casa.

Nunca liguei muito para o fato de ela não ajudar na limpeza do espaço. Eu chegava tarde da noite em casa, pegava a vassoura, o espanador, o bom-ar e mandava ver. Não me importava. De verdade. Ela podia dar quantas festas quisesse, chamar quantas pessoas ela desejasse, que eu não estava nem aí. Contanto que não mexessem ou quebrassem as minhas coisas eu não tinha motivos para reclamar. Admito: Quatro das minhas oito taças de vinho se foram, mas enquanto os meus discos do Sigur Rós, do Neutral Milk Hotel e do Godspeed You! Black Emperor estiverem no lugar está tudo ok.

Pegava os seus livros e CDs do chão, colocava os sapatos no lugar, lavava a louça e jogava as roupas sujas no tanque. Não me dava trabalho e ajudava a passar o tempo naquela cidade que escolhemos morar – e onde, por força das coincidências, nos conhecemos. Acredito que qualquer outra pessoa ficaria incomodada ao ver a sua colega de quarto deitada na rede o dia inteiro, lendo Jung, enquanto você tem que esvaziar cinzeiros, colocar sacos cheios de latinhas vazias pra fora e desentupir a privada. Mas eu não.

Falando desse jeito, devo parecer a pessoa mais paciente do mundo. Mas não sou. E tudo chegou em um ponto no qual olhar para a cara dela me dá náuseas.

Tudo começou em uma sexta-feira chuvosa. Cheguei em casa por volta das cinco horas e ela estava, como sempre, deitada na rede com o livro do Jung nas mãos. Estava escuro por causa do temporal lá fora.

- Namastê – ela disse. Isso significa “oi” em hindu e ela dizia toda vez que eu chegava em casa.

- Por que não acende a luz? – perguntei inocentemente.

Ela deu de ombros.

Apertei o botão do interruptor mas a luz não veio.

- O que aconteceu? Queimou?

- Não sei – ela falou.

- Como você consegue ler no escuro? Por que não vai para o quarto?

Mais uma vez ela me ignorou. Fui para o quarto tirar a roupa, mas quando tentei ligar a luz, novamente não consegui.

Sem pensar duas vezes, corri para a sala.

- Que porra aconteceu aqui? – gritei.

- Do que você está falando?

- Não tem luz nessa casa!

- Não sei. Não sei o que houve...

- Que caralho, viu! – e comecei a tentar ligar tudo o que estava a minha volta: a tevê, o som, o liquidificador, e nada.

- Porra, Luciana, você pagou a conta de luz?!

- Não paguei este mês. Não tinha dinheiro.

- Meu Deus...

Sentei no chão e coloquei as mãos no rosto. Não acreditava naquilo. Ela não tinha pagado a conta. Nosso trato era o seguinte: cada mês uma de nós pagava a conta. Mas este mês ela simplesmente não tinha feito isso. Precisava usar a tevê e o DVD para assistir a um filme naquela noite, mas agora não ia poder por causa desse “lapso” da minha amiga.

- Por que você não pagou?

- Já falei. Não tinha dinheiro.

- Luciana, você deu três festas esta semana com cerveja e cigarros por sua conta. E você não tinha dinheiro?

- Acontece...

- Como “acontece”? Esse era o nosso trato. Esqueceu? Cada uma pagava um mês.

Minha vontade era a de chorar. Mas eu era mais forte do que isso. Queria pisar na cara dela.Virar aquela rede idiota e rasgar aquele livro do Jung.

Não suportava mais toda aquela bobagem hippie. Luciana era uma menina loira e gordinha, que vivia lendo Jung por causa de sua ex-namorada. Sim, além de tudo era lésbica. Sinceramente, não conseguia entender como alguma garota podia ser lésbica. Passar a vida inteira sem um pau não dava. Eu precisava de sexo. Adorava aquela porra espirrando, jorrando na minha cara quase todos os dias – ou pelo menos nos fins-de-semana.

Enfim, essa leitura toda de Carl Jung era para impressionar a garota, que fazia psicologia no Rio, e que Luciana não conseguia esquecer. Queria parecer culta e ter assunto para conversar com ela. Mas não bastasse isso, adorava essas mulheres – lésbicas ou não - da MPB: Adriana Calcanhotto, Ana Carolina, Maria Bethânia, Elis Regina.

Fui dormir cedo naquele dia – afinal, não tinha luz –, pensando em maneiras de matá-la. Tinha ficado realmente puta com a história da luz e ainda mais com o seu cinismo ao falar com a maior cara-de-pau que “não pagou”. Que filha da puta.

No dia seguinte, contei a história para um amigo da faculdade.

- Ela não trepa? – ele perguntou.

- Não.

- Tipo o Morrissey?

- Não. Pior que o Morrissey. Porque ela gostaria de trepar.

- Hahaha.

A sorte é que no dia seguinte eu voltaria para São Paulo. Ficaria por lá uns dias de férias e poderia esquecer essa história. Mas, infelizmente, não foi o que aconteceu. Quase um mês depois do ocorrido, liguei para ela.

- Luciana, você pagou o aluguel desse mês?

- Então, eu estive meio ocupada, pois a Nina (namorada dela) veio me visitar e não pude fazer algumas coisas.

- Luciana. Você pagou o aluguel ou não?

- Clack.

Desliguei o telefone na cara dela. Agora estava determinada a matá-la. Nunca me considerei uma pessoa muito violenta. Talvez explosiva. Mas violenta não. Porém, agora queria ver ela despedaçada, estraçalhada.

Também não sou uma capitalista idiota. Não ligava para o dinheiro. Fiquei realmente puta pela maneira como ela tratou a situação. Aquele apartamento era importante para mim e sem ele não teria onde ficar em Curitiba. Quem ela pensava que era para fazer esse tipo de merda?

Peguei um ônibus para Curitiba. Precisava resolver aquilo o quanto antes, afinal poderia ser despejada caso não pagasse a conta.

Eram sete da manhã quando bati na porta. Acho que ela não esperava pela minha “visita” tão cedo.

- Namastê.

- O que aconteceu aqui? – perguntei, enquanto empurrava ela e entrava no apartamento devastado.

Latas de cerveja, bitucas de cigarro e cacos de vidro estavam espalhados por toda a parte. A bagunça estava fora de controle.

- Recebi umas pessoas ontem – ela disse, ainda tentando acordar.

- Que pessoas, porra? Você e aquela puta da sua namorada ficam no apartamento que eu pago fazendo a festa, enquanto a trouxa aqui fica estudando fora.

- Que trouxa? Você fica aí trepando com todo mundo e diz que está estudando.

- Trepo com quem eu quiser. Melhor do que você que fica aí sem dar esse cu nojento.

Entrei no meu quarto para ver se estava tudo em ordem. Livros da Simone de Beauvoir e do Milan Kundera? Na prateleira. Sapatos coloridos e bolsas? No armário. Discos da Joni Mitchell? Em cima do som. Discos do Godspeed you! Black Emperor, do Neutral Milk Hotel e do Sigur Rós? No chão... No chão?

\Com cuidado, peguei as minhas preciosidades e vi as caixinhas arrebentadas, os encartes parcialmente rasgados e amassados e a parte de baixo dos CDs riscada. Coloquei o disco do Neutral Milk no som para me certificar e tudo o que ouvi foram os primeiros acordes de “In The Aeroplane Over the Sea”. Depois, aqueles segundos iniciais da música foram tocados repetidamente e sem parar.

- Ahhhhh!

Peguei uma das latinhas arrebentadas no chão com tanta força que me rasgou o dedo. Comecei a sangrar.

- Está vendo isso, sua idiota? É tudo culpa sua! – e esfreguei o dedo com sangue na cara dela.

- Meu Deus! Calma!

- Que calma o caralho! Você detonou os meus discos e quer que eu tenha calma?

- Pelo amor de deus... Eu compro outros pra você!

Empurrei ela no chão e caí por cima dela, prendendo ela com um dos braços. Com a mão livre peguei a latinha novamente e a dividi em dois pedaços.

- O que você está fazendo? – ela perguntou, aterrorizada.

Sem pensar duas vezes, cortei a garganta dela com um dos pedaços da latinha. A idiota ainda tentou agarrar os meus cabelos com os bracinhos que se moviam de maneira desesperada.

- Você queria tomar cerveja, é? – perguntei.

Levantei e fui até a cozinha. Peguei uma garrafa de cerveja choca e joguei alguns restos de cigarro que estavam na pia dentro dela.

- Queria cerveja, é? Toma!

Ela tentava manter a boca fechada inutilmente. O corte na garganta sangrava cada vez mais e eu despejava o conteúdo da garrafa goela abaixo. Aquela merda de cerveja com cinzas de cigarro caia para fora e se misturava com o sangue do pescoço. Sua cara estava imunda. Não querendo mais olhar para aquilo, peguei alguns pedaços das minhas queridas tacinhas que estavam pelo chão e enfiei no seu olho esquerdo. Matei ela. Eu tinha feito. Aquilo que eu tinha imaginado se tornara realidade.

Nunca a tinha visto tão bonita. A imagem daquele corpo ensangüentando e imundo no tapete parecia uma pintura. E o cheio de cerveja, cigarro e sangue era delicioso.

Peguei o livro do Jung do chão, me deitei na rede e comecei a ler. Dormi.

Ciro Hamen é jornalista, escreve diariamente sobre cinema no blog www.acentonegativo.blogspot.com e todas as quintas-feiras no Coletivo Action.

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